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Embora ainda tenha trabalhado com quadrinhos após Sandman, Neil Gaiman buscou novos ares para a sua carreira. Migrou dos quadrinhos para a literatura, onde teve tanto sucesso quanto antes, escrevendo obras de grande repercussão, como Lugar Nenhum, Deuses Americanos, Os Filhos de Anansi, O Oceano no Fim do Caminho, dentre muitos outros que entraram nas listas de best-sellers ao redor do mundo. Além disso, trabalhou junto ao também britânico Terry Pratchett na escrita de Belas Maldições, uma das suas histórias mais geniais e insólitas. Gaiman também enveredou pelos caminhos de roteirista, tendo inclusive assinado contribuições para a famosa série britânica Doctor Who, e para a animação A Lenda de Beowulf, de 2007.
Portanto, o audiovisual era a próxima fronteira para o trabalho de Gaiman. Não demorou para que suas obras começassem a ser adaptadas para o cinema e televisão. Algumas, como Coraline e Belas Maldições, atingiram um enorme sucesso. Outras, como Stardust: O Mistério da Estrela, Lugar Nenhum, e o seu roteiro adaptando Beowulf, o épico anglo-saxão, acabaram se tornando mais controversas. Mas talvez a maior decepção tenha sido a adaptação de Deuses Americanos, que acabou fracassando (em parte por fugir bastante do material original, embora muitos problemas durante a produção também tenham colaborado para isso), mesmo sendo a adaptação de uma das suas obras mais populares.
Por isso, mesmo que rumores existissem desde os anos 90, as dúvidas sobre uma possível adaptação de Sandman eram cada vez maiores. Com diversos arcos que se interligam, muitos momentos que parecem ter apenas a função de enriquecimento de cenário, mas que se tornam absolutamente relevantes alguns momentos à frente, além de diversos tons e temas abordados, a HQ parecia algo que não poderia ser adaptada sem mutilar completamente a sua trama. Afinal, se Deuses Americanos, muito menos complexo e mais curto, já havia sido tão problemático, como Sandman poderia ser adaptado sem perder a qualidade do material-base?
Não deixou de ser uma surpresa quando a Netflix anunciou em junho de 2019 que estaria produzindo uma série sobre a icônica obra, em parceria com a Warner e tendo o próprio Neil Gaiman como produtor executivo. Houve algum receio por parte de muitos fãs, por medo do que poderia ser feito com ela, inclusive com alguns duvidando da capacidade da Netflix (e do próprio Gaiman) de transmitir a grandiosidade de Sandman para as telas.Como citamos no início, a trama de Sandman era vista como sendo “impossível de adaptar” até então. Mas o formato de seriado se mostrou absolutamente preciso, permitindo que a trama se mantivesse próxima do original, com poucos cortes relevantes, e com momentos que parecem ter saído diretamente dos quadrinhos. É uma das adaptações mais fiéis que já foram feitas, mesmo que, ao mesmo tempo, não seja isso que ela tente ser.
Isso porque Neil Gaiman sabe que estamos falando de mídias diferentes e que toda a sua linguagem precisava ser adaptada. Assim, alguns momentos precisaram ser suprimidos, enquanto outros foram enfatizados, mas poucos cortes foram de pontos relevantes. Algumas partes foram amenizadas, principalmente no episódio Sem Parar, que ainda trazia uma carga muito maior de surrealismo e simbolismo, mas a sua simplificação ainda gerou um momento poderoso e tenso do seriado (ao menos para o público que não conhece o original). Acima de tudo, o seriado é uma atualização, uma vez que o material-base se passava nos anos 80, contendo diversas referências culturais da época, mas que não seriam tão relevantes hoje. Além disso, a série se afasta bastante do mundo dos super-heróis da DC, uma decisão que julguei acertada, uma vez que a narrativa de Sandman destoava enormemente deste gênero.
Algumas escolhas do elenco trouxeram dúvidas a alguns fãs. mas a adaptação foi primorosa e teve extremo cuidado em preservar o espírito da obra original. Afinal, por mais que seja uma imagem que tenha se cristalizado por anos nas mentes dos leitores, o que muda se a Morte não é uma gótica pálida com visual tipicamente "oitentista"? Ou se Morpheus não tem um cabelo à la Robert Smith (do The Cure)? Ou se Lúcifer não se parece mais com David Bowie? Estamos falamos dos Perpétuos e outras entidades cósmicas sem forma definida, em uma trama que não se passa mais nos anos 80 (onde tais figuras eram ícones culturais). É possível dizer, portanto, que a média do elenco apresenta um trabalho muito conciso e fiel à obra, mesmo que sua caracterização pareça diferente.
Porém, é notável que alguns nomes se destacam. Do Roderick Burgess (do sempre incrível Charles Dance) à Lucienne (de Vivienne Achaempong), estamos diante de um grupo extremamente devotado. A Morte (de Kirby Howell-Baptiste), que consegue passar uma indescritível ternura no capítulo que adapta a obra-prima O Som de Suas Asas; Gwendolyne Christie (em Uma Esperança no Inferno) como Lúcifer; o Gilbert de Stephen Fry (durante o arco A Casa de Bonecas); David Thewlis, divinamente perturbador com seu John Dee; Boyd Holbrook como um Corintío ao mesmo tempo sedutor e assustador; e Mason Alexander Park, no espetacular papel de Desejo. E, apesar de certos exageros nas expressões, Tom Sturridge consegue passar um tom apropriado, sombrio e até mesmo imponente, para o seu Morpheus. O restante do elenco é bastante convincente, embora pareça faltar um pouco de consistência à direção em alguns momentos.
A primeira temporada da série aborda os dois primeiros arcos da HQ, Prelúdios e Noturnos (que narra a captura de Sonho e sua busca por suas ferramentas após a sua libertação, culminando em O Som de Suas Asas, um dos episódios que melhor exemplifica a escrita de Gaiman) e Casa de Bonecas (que se foca em Rose Walker, um vórtice dos sonhos; e no confronto final com o Coríntio), além de algumas histórias avulsas de O País dos Sonhos (Homens de Boa Fortuna, Calíope e Sonho de Mil Gatos). Destes, apesar de algumas adaptações, certamente o primeiro arco foi adaptado com maior fidelidade, sendo um verdadeiro deleite para os fãs. Homens de Boa Fortuna foi encaixado com primor junto a O Som de Suas Asas. A Casa de Bonecas, por sua vez, teve sua trama bastante resumida, em parte para diminuir a sua ligação original com os super-heróis da DC Comics, mas é inegável que sua trama ficou um tanto corrida e não permitiu um desenvolvimento adequado dos personagens (este é um dos arcos voltados aos personagens humanos da trama). Quanto a Calíope e Sonho de Mil Gatos, estes foram adaptados de forma bastante fiel e eficaz, sendo lançados como um episódio bônus.
A série foi recebida com bastante entusiasmo e ficou em primeiro lugar entre as mais assistidas da Netflix ao longo de todo o mês de agosto. Apesar de ainda não ter uma segunda temporada confirmada, a sua audiência e sua alta aprovação devem ser o suficiente para garantir sua continuidade (que provavelmente adaptará um dos seus melhores arcos, Estação das Brumas, bem como um dos mais sensíveis, Um Jogo de Você), apesar do seu alto custo de produção. Para a maioria dos fãs, ver Sandman em formato de seriado é como se Morpheus tivesse em pessoa tornado um sonho em realidade. Alguns podem sentir que a série não é tão complexa ou pesada quanto a HQ (o que é uma verdade), mas ela não precisa ser. É uma outra obra, com outra linguagem, mas que conta a mesma história e é perfeitamente fiel aos seus temas e seu espírito. Mais do que isso, ela está sendo uma entrada para diversos novos sonhadores ao mundo fantástico que por tanto tempo nos encantou. Apenas por isso, a adaptação já merece aplausos. E que todos tenham um dia a oportunidade de conhecer os mundos interiores que Neil Gaiman nos presenteou com seus quadrinhos, livros e agora seriados.
Vocês sabiam de todas essas curiosidades? Comentem aqui!
Wallace William de Sousa
Autor Pendragon
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